segunda-feira, 10 de junho de 2013

Os herdeiros do Ultramar- #1

Vivia os dias, um após o outro, sempre acompanhado de meras tentativas frustradas de escapar à avalanche de lembranças que lhe afloravam à mente. Para onde quer que fosse os seus fantasmas nunca o abandonavam. Gritos ecoavam, na sua mente, como se fossem proferidos em tempo real, como se os seus ouvidos sucumbissem ao vibrato ensurdecedor... Samuel, apenas tinha tempo de levar as mãos às têmporas, totalmente possuído pelo desespero. Fechava os olhos.

Sempre que os fechava, voltava àquela terra. Tão quente, cheia de natureza e abundante de maravilhas, onde o sabor do pó vermelho do chão se misturava com o aroma do barro do qual eram feitos os corpos negros dos seus habitantes. Mas Samuel é agora alheio a tudo isso. As feridas que a guerra lhe cravou na alma torturam-no, sufocam-no, levando consigo qualquer lembrança mais suave que possa ter de África.
África era para ele sinónimo de inferno. Como pode uma pessoa voltar a viver depois de enterrar a sua própria alma? O seu corpo sobreviveu a três longos anos de recruta, mas a sua alma perdeu-se na guerra. Sempre foi desertora. Tanto pelo que os seus olhos viram, como pelos actos insanos das suas mãos. Ainda sente o clamor do sangue ardente daqueles que suspiraram pela última vez, e caíram sobre os pés dele, de olhos revirados expressando o horror de uma guerra que não era sua. Nunca conhecemos os nossos limites até estarmos prestes a perder a existência. Ele arriscou salvar a pele que lhe reveste alma, mas hoje sabe que preferia ter perdido a vida. Sabe que hoje, mais do que nunca, desejava que a morte o tivesse convidado a entrar na sua murada. 


Hoje não passa de uma sombra errante, sem um laivo de esperança, a quem a amargura do Ultramar pintou de sofrimento.
Mas hoje, Samuel cumpre uma pena pesada, talvez a mais penosa de todas... vive algemado às grades de uma quase vida, arrastando sofregamente o que resta da sua perna esquerda, arrancada pela força de uma mina... hoje Samuel é apenas um corpo vazio a pagar por todos os seus pecados, talvez até pelos pecados que não só ele cometeu, também ele é uma vítima.
Recebeu uma medalha, mas nem a pátria o salva dos tormentos de uma consciência pesada. 


Venceu a guerra?

As guerras nunca se vencem. Apenas contabilizam perdas irreparáveis nos corações dos seus filhos. Ele, Samuel Guerra, sobreviveu, tornando-se ausente de si mesmo... a sua existência perdeu-se, ou talvez tenha morrido mesmo antes dele próprio nascer de novo.

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