sexta-feira, 26 de abril de 2013

O ultimo compasso do pianista (mini-conto)

Costumava passar horas a fio a observar-te tocar. Quase ficava hipnotizada. Era como se o tempo parasse. Não havia mais nada. Apenas eu, tu e aquele velho piano. Creio que aquelas teclas já conheciam a moda dos teus dedos, como uma mãe conhece as manias de um filho, mesmo nas profundezas do seu intimo. Era como se tu e aquele piano fossem um só, em toda a possessão musical que emanavam de corpo e mente. Pressionavas as teclas tão efusivamente que o chão parecia vibrar ao som de cada compasso tocado.

 De vez em quando paravas. Olhavas para mim e sorrias com aquele ar maroto que sempre tiveste. A tua veia artística sempre fez salientar em ti esses traços selvagens mas em comunhão com a tua perfeita natureza clássica. Nunca consegui explicar isso muito bem. Nem tu. Nunca conseguiste definir-te. Oscilavas entre o clássico e o contemporâneo, entre o jovial e o melancólico, entre o teu eu presente e aquele teu outro eu que sempre será criança. 
Questiono-me se não terias herdado esses traços de outras vidas anteriores a ti mas que de alguma maneira ainda vivem ao sabor das notas que tocas. Deixas sempre a mesma pauta para o fim, só para teres o prazer de ouvir a minha voz quebrar o silencio das tuas paragens para implorar para que a toques. Finges começar a toca-la e voltas a parar. Adoras deixar-me expectante... sempre naquela ansiedade de escutar tão doce harmonia. Então, com aquele olhar doce e terno pedes que dance para te acompanhar. Como poderia negar um pedido teu? 
Em silencio, apenas sorri, levantei-me lentamente e coloquei-me de pontas. Os braços imitavam os voos de um perfeito cisne, enquanto me observavas. Começaram a soar as primeiras notas. Teus olhos já não se perdiam na imensidão preta e branca das teclas, nem nas notas daquela velha pauta, que já conhecias de cor. Agora os teus olhos, dois pequenos pedaços de céu, de uma estranha profundeza de azul, estavam fixos em mim. Quase os sentia abraçarem-me. 
E continuavas a tocar. E eu continuava a dançar, quase chorando de emoção. O teu sorriso me acarinhava de mansinho e os teus olhos me abraçavam cada vez mais forte. Já não havia mais nada. Apenas aquele momento. E se o mundo terminasse naquele instante, em sei, que voarias comigo, ao som daquela mesma sinfonia. Soou a ultima nota. Eu já a esperava, e tu também. Porem, o silencio não foi capaz de quebrar o meu voo e em segundos não só os teus olhos mas também os teus braços me abraçavam. 
Voávamos juntos, nossas almas já não se encontravam separadas, ter-se-iam prometido uma à outra enquanto ambos nos perdíamos ao som daquelas notas.
 E agora o único som capaz de rasgar o silencio era o compasso único dos nossos corações. Batendo forte, quase querendo sair do peito para se aninharem ao colo um do outro. Não sei quanto tempo terá passado, só sei que depois daquele solo jamais voltamos a tocar separados. Tocamos em uníssono. Em perfeita comunhão, dividindo as nossas estranhezas, elevando as nossas riquezas. Tal como a suavidade das teclas brancas e a imponência dos negros acordes, completa-mo-nos. Vivemos da mesma melodia fazendo de cada nota, um ultimo e derradeiro compasso. 

(imagem do Google)

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